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Foto do escritorContextualize UEMG - Passos

Marcadas pela violência

Chego para a entrevista com antecedência, pois ela foi marcada na casa de uma amiga da vítima a pedido dela, pois em sua própria casa não se sentiria à vontade e enquanto aguardo, reflito sobre a violência contra a mulher no Brasil, que ocupa o 5º lugar no ranking de países nesse tipo de crime, e no quanto ela afeta a vida de milhares de mulheres todos os dias. Ao entardecer, Maria da Silva, nome fictício, pois ela pediu que não a identificasse, chega e a primeira impressão que tenho dela é a de uma mulher alegre e segura. Maria me cumprimenta e logo nos sentamos para que ela possa me contar a sua história.

Natural de Barretos, São Paulo, Maria hoje tem 44 anos, é costureira, mãe de um jovem e mora em Passos. Aos 19 anos de idade ela foi estuprada.

Nesse momento, Maria troca o sorriso pela seriedade, seu tom de voz diminui e, quase sussurrando, me conta detalhes do momento de terror que viveu há 25 anos.

Como a maioria dos jovens de 19 anos, Maria gostava de cuidar do corpo e por isso fazia academia. Entre um exercício e outro, ela se envolveu com o instrutor. Em um dia chuvoso, Maria, que trabalhava como doméstica, ao retornar para o seu lar depois de um dia de serviço, encontrou o professor parado dentro do carro na frente de sua casa e ele então a convidou para ir a um motel. Assustada com a proposta, Maria recusou, porém o instrutor a convenceu afirmando que nada ia acontecer, pois somente entrariam na banheira de roupas, caso ela preferisse. Acreditando na palavra do rapaz, a doméstica preparou uma troca de roupa e entrou no carro.

Maria faz uma pausa para me explicar que era muito ingênua nessa época e que confiava nas pessoas sem ver maldade nelas. “Eu achava que ninguém ia ter coragem de fazer alguma coisa que eu não quisesse que fosse feita”, contou.

Chegando ao motel o instrutor, aproveitando da inocência de Maria, a encurralou e a estuprou. Ela conta que tentou empurrar com toda a sua força, mas não conseguiu evitar. Naquela noite sua virgindade foi arrancada por meio de violência e trauma.

Maria não denunciou o seu agressor, pois não sabia o que era um estupro e que tinha sido vítima de um. “Demorou pra eu perceber o que tinha acontecido, só depois de muito tempo, anos até, que eu fui analisar e pensei: ele fez algo que eu não queria que fizesse.”

O estupro de Maria da Silva não é um caso isolado. Em 2014 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou uma pesquisa chamada “Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” utilizando informações de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan). De acordo com o estudo, estima-se que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.

Além disso, a pesquisa também aponta que em geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, ou seja, de pessoas das quais se espera proteção e carinho.

Consequências da violência

O crime deixou marcas profundas na vida da costureira. Ela me contou que a partir daquele momento não conseguiu se relacionar com mais ninguém, pois ficou extremamente traumatizada. “[O estupro] tirou alguma coisa de mim, porque eu não esperava que fosse acontecer daquela forma. Eu peguei um certo nojo dos homens e eu não tenho nem vontade de casar”, explicou Maria.

Ela diz que na época não teve coragem de se expor por medo do que as pessoas pensariam dela. “Eu pensava: como que alguém vai acreditar que eu entrei no motel com ele e fui estuprada? Eu fui porque quis, mas não imaginei que ele fosse fazer isso”.

Até um dia antes da entrevista, Maria só tinha compartilhado a história dela com amigos próximos, porém em um momento de discussão com o seu filho de 19 anos, acabou revelando esse segredo. O rapaz faz tratamento psicológico por ter sofrido bullying devido à sua timidez.

“Ele reclama da vida e acha que só ele tem problemas, então contei o que aconteceu comigo. Ele levou um susto e sugeriu que eu também procurasse um psicólogo, mas respondi que primeiro quero resolver os problemas dele, o meu a gente deixa. Ainda não me acostumei, mas tive que seguir em frente, porque a vida é cheia de tropeços”, contou Maria.

Nesse momento ela me olha fixamente com um semblante que me transmite dúvida e me diz que não sabe como mudar isso em sua vida. “Como eu vou fazer? Eu preciso fazer um tratamento? Eu não sei o que eu preciso fazer e isso é muito difícil e sofrido”, concluiu.

Ao final da entrevista, peço para Maria da Silva dar um conselho para as mulheres que passam ou já passaram por alguma situação parecida e instantaneamente ela me diz apenas uma palavra: Denunciem. Em seguida considera que se tivesse feito um boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, provavelmente ele teria sido preso, mas ela só não denunciou porque demorou a perceber que tinha sido vítima de um crime.

“Nós não estamos aqui para sermos abusadas. Não é porque se usa um decote ou uma roupa curta que quer dizer que queremos ser estupradas. Não é porque eu beijei e aceitei a ir pra um motel com um cara que eu quero que aconteça isso. Nada justifica ser abusada, isso é muito triste. Denunciem.”

Dormindo com o inimigo

Foi o que a auxiliar de limpeza Lilian da Silva Silveira, 30, de Passos, Minas Gerais, fez com o seu ex-companheiro que a agrediu.

Lilian aceitou me receber em seu trabalho, na Escola Municipal Professor Silas Roberto Figueiredo durante o seu horário de almoço. Em um dia ensolarado, com as crianças tendo aula de educação física ao fundo, nos sentamos em banquinhos embaixo de uma árvore e iniciamos a entrevista.

Perguntei se ela queria que não a identificasse, ela negou e naquele momento senti que a auxiliar de limpeza sentia orgulho de sua história. Sempre com um sorriso no rosto, Lilian então com muita simplicidade iniciou o seu relato.

Há cerca de 2 anos, Lilian morava com o seu companheiro há 6 meses. O início do relacionamento foi tranquilo, mas depois de 3 meses alguns comportamentos violentos começaram a aparecer e, somados ao consumo de bebida alcoólica, se intensificaram.

Com 4 meses de convivência Lilian sofria constantes agressões psicológicas, mas ela tinha esperança de que ele melhoraria. “Ele até começou a ir na igreja evangélica e eu acreditava que ia mudar”. Não mudou.

As agressões psicológicas e ameaças que Lilian sofria lhe trouxeram muito medo, porém não foi empecilho para que ela denunciasse. Na primeira vez que fez um boletim de ocorrência ela conta que o policial que a atendeu queria prendê-lo imediatamente, porém não conseguiu.

A partir do momento em que a auxiliar começou a denunciar o seu companheiro, as agressões psicológicas se transformaram em físicas e quase causaram a sua morte. “Ele quase me matou. Ele me enforcou, pegou o podão, pensa…”. Temendo por sua vida, Lilian voltou no mesmo dia para a casa do seu pai e planejou uma estratégia de defesa.

No total foram 4 boletins de ocorrência e uma medida protetiva, sendo a última definitiva para afastar completamente seu ex-namorado e garantir proteção. Lilian conta que não foi tão fácil denunciar, pois, por falta de informação adequada, ela se dirigiu para a Delegacia da Mulher, onde por duas vezes não conseguiu ser atendida.

A orientação para esses casos, conforme a Delegada da Mulher de Passos Ariane Lira Alcântara Pimenta me explicou em entrevista, é acionar a Polícia Militar no ato do crime, pois eles orientarão a vítima e, caso haja lesão corporal encaminharão para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Se não for no ato do crime, a vítima deve se dirigir ao posto da Polícia Civil na Unidade de Atendimento Integrado (UAI) de Passos, localizado na Rua dos Engenheiros, 199 no Bairro Belo Horizonte para registrar o boletim de ocorrência ou na Polícia Militar. Na Delegacia da Mulher não há um funcionário apto a registrar B.O., por isso não é indicado ir diretamente para lá.

Decidida a resolver o seu problema, Lilian da Silva foi ao Fórum de Passos para conversar com o promotor e uma semana depois já estava com a medida protetiva em mãos. A partir de então, ela começou a se sentir um pouco mais segura, pois tinha algo concreto para resguardar a sua segurança. “[Após a medida protetiva] ele respeitou, às vezes ainda me liga, mas nunca mais insistiu em nada”, disse.

Interrompo o relato e pergunto para ela como ela definiria esse momento da sua vida em uma palavra e ela me responde com duas. “Medo. Medo e depois coragem né? Você pode ter o medo, mas se não arrumar coragem… Foi um medo que se transformou em coragem e me ajudou a chegar até o fim.”

Com essa atitude, Lilian conseguiu escapar de fazer parte de uma estatística brasileira muito triste. De acordo com o “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil” realizado por diversos órgãos como a ONU Mulheres e Secretaria de Políticas para as Mulheres, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex.

A auxiliar de limpeza me explica que depois de denunciar, o medo ainda persiste, mas é apenas uma fase de transição. Ela contou com o apoio constante, primeiro da família e depois dos amigos que a ajudaram com orações e conselhos. “Não devia existir nenhum tipo de violência, mas se ele achou melhor a violência, foi procurando a Justiça que eu achei melhor também”.

Lilian afirma que a melhor alternativa é denunciar quantas vezes for necessário, mesmo com medo, pois o mais importante para ela é a dignidade. Ela aconselha as mulheres a não esperarem e assim que as primeiras agressões começarem a acontecer, denunciar. “Quem é o homem pra por a mão em mulher, né? Muitas tem medo de denunciar e mesmo assim morrer, mas pelo menos você agiu, você tentou se defender”.

Antes de encerrar, pergunto para Lilian como ela se sente, 2 anos depois, em relação ao que viveu. Ela me conta que não guarda mágoas ou ressentimento e que, por meio de sua fé, conseguiu perdoar o seu ex-namorado.

Delegacia da Mulher em Passos

A Delegacia da Mulher foi instaurada em Passos em 2006 quando a Lei nº 11.340/06, a Lei Maria da Penha, foi aprovada. Em 2013 a delegada Ariane Lira Alcântara Pimenta assumiu o comando da Delegacia.

Desde a sua implantação o número de investigações vem aumentando significativamente. Em 2006 foram instaurados 40 inquéritos, já no ano seguinte houve um crescimento de 205%. Em 2016, 361 denúncias foram formalizadas.

De acordo com a delegada, esse crescimento se deve ao aumento de informação e a divulgação nas mídias que faz com que a população discuta o tema e denuncie os crimes. Além disso, em 2012 houve uma mudança na Legislação, pois o Supremo Tribunal Federal entendeu que lesão corporal no âmbito doméstico é incondicionada, ou seja, se a vítima foi agredida por seu companheiro, namorado, ex-namorado ou marido ela não precisa representar.

Apesar desse aumento, algumas mulheres ainda resistem em denunciar. Dentre os motivos principais estão a dependência financeira e emocional da mulher em relação ao marido.

Ariane me explica que os crimes mais recorrentes na cidade são lesão corporal no âmbito doméstico, agressão física e psicológica em vias de fato e ameaça. Segundo a delegada, 80% dos casos se enquadram em um dos três.

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