Em Carmo do Rio Claro, município localizado às margens da represa de Furnas, no sul do estado de Minas Gerais, fieis de várias localidades da região vão até a cidade e encaram uma subida cheia de curvas, até chagarem ao cume da Serra da Tormenta.
Durante todo ano, mas especialmente em feriados prolongados, o local é explorado por pessoas de diversos lugares do país, com peso maior de paulistas, tanto da capital, quanto do interior. Com uma vista que convence os olhos de beleza, a serra oferece um conjunto de linhas simétricas a assimétricas que dispensam programas de edição de fotografia.
Mas a multidão de pés que escala o trilho de pedras ocorre nas religiosas datas de Sexta-Feira da Paixão e Nossa Senhora Aparecida. Porém, não há regra e data para a fé dessa gente. Em casos isolados, durante todo o ano, com o calor que ascende no peito e deságua no coração cheio de esperança, há também quem possua uma promessa a pagar, um motivo para agradecer ou um pedido especial.
Luiz César de Andrade, o Cezinho Mecânico, 58 anos, 2 filhos, e uma longa história de fé e incontáveis passos de agradecimento. Residente em Carmo do Rio Claro, ele sobe a Serra da Tormenta desde seus 13 anos, quando foi pagar uma promessa. Cezinho não parou mais de ir ao alto, adentrar a capelinha de Nossa Senhora Aparecida e agradecer.
E motivos para ser grato à Santa não faltam para o pai de Luiz Fernando e Maria Luiza. Uma vez, quase se afogando, ele gritou em pensamento por socorro a Nossa Senhora Aparecida e o milagre o tirou vivo da água, assim como em solo firme, quando seu caminhão perdeu o freio descendo uma avenida da cidade, abriu o capô, deixando-o totalmente sem ver onde estava e desgovernado declinava a cada segundo com mais velocidade, até que um súbito berro ecoou aos céus e uma brecha de visão lhe mostrou um terreno baldio, onde conseguiu jogar o Dodge azul e evitar um acidente, sabe se lá em quais proporções. “Não tinha visão de nada, gritei alto o nome de Nossa Senhora Aparecida, e por um milagre, consegui enxergar um terreno baldio, o único que havia naquele lugar e então, consegui jogar o caminhão lá, sem que nada de grave ocorresse comigo ou outras pessoas”.
Demonstrações que, talvez, expliquem a sua disposição em repetir o trajeto há tantos anos, chegando, inclusive, a ir ao local até 3 vezes em apenas um dia.
Devido a devoção de sua mãe, o carmelitano Marinho, leva o nome da padroeira em seu registro de nascimento. Mario Aparecido de Paula nasceu em um 12 de outubro e a religiosidade unida a data especial, levou Dona Maria Aparecida de Oliveira Alves, a batizar o filho homenageando a Santa. Marinho conta que na infância, subia a Serra frequentemente com seu pai, João Alves de Paula e que mesmo após a morte dele, continuou exercendo o ato de fé sozinho, até os 23 anos, quando se mudou para São Paulo.
Com a mudança para s capital paulista, Marinho deixou de subir rigorosamente a Serra da Tormenta todo dia 12 de outubro para agradecer. Impossibilitado pela logística, quando não está em Carmo do Rio Claro no feriado, vai ao local na visita mais próxima à data. “Sou devoto de Nossa Senhora Aparecida e subo para agradecer pela minha saúde. Como não é mais possível subir exatamente no dia 12, sempre subo quando vou à cidade antes do feriado”, explica.
Se subir a pé 1.287 metros já é um esforço de reconhecimento de fé, ao menos para quem não possui o hábito de se arriscar em caminhadas que não passam muito além da esquina de casa para ir à padaria ou ao supermercado; andar entre 40 a 75 km torna-se uma peregrinação sublime. Mais ainda quando se trata de vários anos ininterruptos.
Desde 2010, Rogério Marcos Gomes carrega sua fé passo a passo, por mais de 40 km até chegar na Capela de Nossa Senhora Aparecida, no alto da Serra da Tormenta, todo dia 12 de outubro. Com um pequeno grupo de amigos, ele sai da vizinha Alterosa no dia anterior, às 19h30, atravessa à noite caminhando e nos primeiros raios de sol, ganha o altar da Padroeira. No total, são cerca de 11 horas de trajeto, entre muitos litros de água, orações, riscos e uma insuperável devoção.
O alterosense conta que todo ano, em 12 de outubro, saem entre 80 pessoas em pequenos grupos, de sua cidade a pé, rumo a Carmo do Rio Claro, com o mesmo objetivo.
Herdada a fé da família, o pai de Luiz Miguel e do recém nascido João Lucas, que já fez o trajeto por dois anos junto à esposa, Simone de Souza, diz que o motivo para trilhar o percurso a pé é para agradecer. “Tenho fé em Nossa Senhora Aparecida desde criança devido a minha família e faço esse esforço todo ano para agradecer por tudo”.
A distância parece ser um desafio que arranca coragem e desafia sem lógica a crença. Uma instigante dádiva de superação capaz de convencer o mais desiludido dos seres, ou ao menos, colocá-lo por alguns minutos diante de um silêncio de reflexões.
Do lado oposto a Alterosa, e a 75 km de Carmo do Rio Claro, a cidade de Passos há 21 anos possui um grupo de romeiros que se joga na fé e queima solas de sapatos pela devoção. Ainda no século passado, o religioso José Ferreira e mais 2 amigos, partiram a pé, numa quinta-feira Santa, com destino ao alto da Serra da Tormenta.
Com problemas de saúde, José Ferreira deixou há alguns anos a organização da romaria, que, do início até aqui, só tem aumentado o número de fieis, de 3 o número saltou para 70 pessoas, tendo uma média de 6 mulheres todo ano na peregrinação. Na incumbência de não deixar a tradição se esvair, o motorista aposentado, José Amilton, o Tim, 51 anos, assumiu a cruz e a carrega com colossal responsabilidade e satisfação.
A primeira vez que fez o trajeto foi em 2007, quando soube da romaria por um romeiro. De lá pra cá, teve em sua caminhada de fé, por uma vez, a companhia da esposa Maísa Pimenta, com quem é casado há 29 anos e dos filhos Marcos Vinícius Pimenta e Thaís Pimenta. E é sobre a união da família, que Tim dá o maior enfoque na mudança obtida desde que começou a ir anualmente a pé a Carmo do Rio Claro rezar e agradecer na capelinha da Serra da Tormenta.
“Após as idas em romaria, aprofundei na fé, foi uma benção. Hoje possuo um convívio familiar melhor, com mais amor, mais união. Antes, as coisas estavam meio complicadas, havia uma certa desunião em casa, mas depois que resolvi aceitar esse desafio, a convivência em família mudou muito, somos muito mais felizes”.
O otimismo e ausência de pensamentos negativos também estão entre as principais mudanças na vida do passense. Uma lacuna que insistia em perturbá-lo hoje é ocupada por uma esperança imensurável. “A força que vem de Deus é que nos move na vida. A gente às vezes tem preguiça em querer fazer as coisas, damos espaço ao pensamento negativo em tudo, mas a fé sempre nos ergue. Todo ano é uma renovação de fé”.
Com uma oração, acompanhada de um terço, os romeiros iniciam a jornada às 15 horas da quinta-feira Santa, caminham mais 3 horas, quando é rezado o segundo terço e, à meia noite, rezam mais um. Às 8 da manhã, o último ato da devoção, os derradeiros 2.574 metros da caminhada movida pela fé, contando subida e descida da serra, até retornarem de ônibus para Passos.
Sexta-Feira da Paixão, Dia de Nossa Senhora Aparecida, dias comuns, seja individual, em grupos de romaria ou procissões, A Serra da Tormenta se tornou parte de uma estimada história religiosa que, apesar do nome, hasteia esperança, devoção e crença. Nem mesmo as antenas de rádio, tv e telefonia celular, ofuscam a sintonia dos fieis. Nem mesmo as histórias de assombração de quem a subiu pela noite em datas não religiosas, apagam o expresso da fé no altar de sua simples e simbólica capela.
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