O Brasil, a partir das disputas eleitorais de 2014, sobretudo para presidência da República, incorporou marcas sociais que, certamente, estarão para sempre na história de nosso país. No caso específico das eleições do cargo à presidência, há inúmeros aspectos que corroboram com esta asseveração: a narrativa da campanha – peças publicitárias, confronto de declarações, debates acalorados, as chamadas desconstruções dos atores políticos – bastante acirrada; e, principalmente, um maior engajamento político da população brasileira, embora, na maior parte dos casos, por vias virtuais. A peleja eleitoral ganhou, então, muita repercussão não somente na chamada mídia tradicional, os jornalões de grande circulação, impressa ou digital, mas principalmente nas redes sociais, de mais variados tipos (Facebook, Twitter, WhatsApp, entre outros).
Por um lado, o engajamento político em si, ainda que muitas vezes com debates rasos, com informações imprecisas, seja por desinformação, seja por desonestidade intelectual, é sem dúvida um saldo positivo. Democracia é também isso: engajamento e disputa ideológica o tempo todo. Estar atento aos debates públicos requer disposição, participação, discussão (no campo das ideias) e eterna vigilância, pois, mesmo não estando neste poder central, elegido democraticamente, estamos exercendo relações de poder em tempo integral. E sim: podemos e devemos manter esse exercício de poder nas instâncias democráticas. Vale lembrar isso, ressaltamos, ainda que redundante e amplamente tratado, porque há quem insista no exercício de poder por golpismos de toda ordem, e o processo fajuto de impenchement da presidenta Dilma Rousseff sempre se tratou de um golpe deslavado e a história, mais breve do que imaginávamos, está a provar isso.
Por outro lado, entretanto, nessas disputas eleitorais houve também fatores bastante perniciosos desse engajamento político que presenciamos, a saber, as manifestações de ódio, de não tolerância da alteridade física e intelectual, de preconceitos de toda sorte. Portanto, ao mesmo tempo em que existiu um autoconhecimento do povo brasileiro sobre a importância da mobilização e participação política – há quem analise que as disputas nessas eleições refletem em grande medida as participações populares ocorridas em junho de 2013, as alcunhadas Jornadas de Junho – existiu também um autoconhecimento de nossos “demônios” internos, capaz de destilar puro ódio contra aquilo que não sou “eu” ou não é o “meu” grupo de pensamento e convívio social. Essa caixa de pandora liberada, principalmente, nas redes sociais trouxe à baila uma reflexão que nos parece ter passado um pouco ao largo das discussões de o porquê tal fenômeno de agressividade tenha ocorrido.
Já há um bom tempo pessoas envolvidas de maneira ampla com os debates da educação, sobretudo na área de estudos da linguagem, têm se indagado que as escolas brasileiras privilegiam a leitura como um bem do repertório cultural sem contra-indicação (ver sobre isso os excelentes trabalhos do professor e pesquisador Valdir Heitor Barzotto, da USP). Ou seja, a leitura é vista como uma boia salvadora capaz de dar conta dos baixos índices de um repertório de conhecimento, baixos índices estes que acarretariam, em última instância, em motivos por certo atraso nos desenvolvimentos social, humano, econômico, entre outros, e até mesmo por outras mazelas, como a violência altíssima a que estamos acometidos. E violência em diversas práticas, como preconceitos, e não somente física, como assassinatos. Além disso, a leitura também é vista como a solução para a melhoria da escrita. Um mantra de que para escrever bem é preciso ter leitura.
De fato, concordamos, a leitura é condição necessária à melhoria e ao desenvolvimento das práticas de escrita. E há essa necessidade de avanço, pois vivemos em uma sociedade letrada, com práticas sociais de interação orais e escritas. É preciso levar tal ponto em consideração. Entretanto, a leitura, por mais e de melhor qualidade que seja, não se transfere automaticamente a práticas de escrita, nos mais diversos gêneros textuais.
Para escrever mais e melhor é preciso, vejam só, escrever. Sim escrever. Somente assim chegaremos ao encontro da condição necessária e suficiente da melhoria da escrita. Isto é, ler e escrever, são, juntas, as condições necessárias e suficientes para melhorarem a si mesmas. Lendo e escrevendo se escreve melhor, com mais sofisticação e acuidade, em diversas situações sociais (um e-mail, um tuíte, uma postagem, mas também uma carta, uma monografia, um memorando, uma tese, uma redação, um ofício, um livro…). Escrevendo e lendo se lê melhor, com mais solidez e competência, em outras tantas práticas sociais (um texto de jornal, um livro, uma tese, mas também um tuíte, uma postagem de Facebook, um e-mail…).
A interpretação de um texto qualquer também se passa pela compreensão, teórica e empírica, de como são construídos os textos. A mecânica de seu funcionamento e de sua elaboração e dispersão. A anatomia das palavras, períodos, gêneros textuais empregados, função da autoria, enfim, em que tudo aquilo que se fez e se mobilizou para escrever. Com justiça, é preciso dizer que muitas pessoas de diversas áreas de estudo científico, como a Linguística, área em que trabalhamos, vêm há muitos anos insistindo em tal questão. Ressaltamos aqui o trabalho do professor e pesquisador Sírio Possenti, da Unicamp, que em seus mais diversos meios de comunicação (blogs, livros, aulas, teses) insiste repetidamente na união desses dois processos. E com essa amálgama, diz o pesquisador, teremos efetivamente melhores leitores e escritores e “uma cultura letrada mais sofisticada”.
E o que a reflexão sobre as práticas de leitura e escrita tem a ver com o fenômeno de agressividade de que falamos? A hipótese é de que assim como as práticas de leitura e escrita permitem uma articulação expressiva mais sofisticada, esse mesmo processo implica maior conhecimento pelo indivíduo do lugar que pode ou quer ocupar no conjunto social, uma vez que essas práticas implicam múltiplas relações que muitas vezes extrapolam o imediato espaço-temporal.
Ocorreu que, por consequência da escrita engajada nas redes sociais, blogs, artigos de jornais, a partir das últimas eleições, veio à tona um tipo de autoconhecimento do próprio povo brasileiro. Um conhecimento de que lendo e escrevendo é possível se engajar, participar, ser um ator social ativo, e não mais somente um espectador (ou na maioria das vezes um telespectador).
Esse autoconhecimento, esse mergulho dentro de si, trouxe também à superfície alguns monstrengos sociais, presentes em nossa cultura, em nossa moral norteadora de muitas de nossas ideologias. A não tolerância ao que o outro tem a nos dizer e a oferecer, a representação do outro como o algoz, preconceitos, racismos, xenofobias, ideias fascistoides (liberamos o fascistinha trancado dentro de nós e de fascistinha em fascistinha chegaremos a…), agressividade, ódio, violência e tantos outros males que assolam nosso país. Todavia, esse engajamento escrito, circulado, ativo, pois as redes sociais e quem nelas se insere pedem essa participação, esse comunitarismo digital, afinal, essa é forma canônica do dispositivo (compartilhe, participe, curta, dê sua opinião), fez com que nós mostrássemos a nós mesmos e aos outros vários sentimentos adormecidos no âmago da nossa anticordialidade (até porque o propalado “brasileiro cordial”, do grande e brilhante Sérgio Buarque de Hollanda, é constantemente confundido com pacifismo, tolerância, receptividade, mas, ao contrário, cordial significa agir com o coração, pelo sentimento e não pela razão, com um acolhimento patriarcalista e patrimonialista: aos amigos tudo, com jeitinho, aos inimigos a lei, com formalidade, ou a pancada, em muitos casos).
A escrita, por necessitar, a depender do gênero, de uma elaboração mais atenta, faz também com que tenhamos de buscar, em nosso paradigma de memória histórica, palavras, frases, provérbios e outros elementos que não são necessariamente produzidos ali, no instante da escrita, mas vêm de antes, de outros lugares, da boca líderes de outros tempos, de outros sistemas políticos, de outras ideologias, cuja função ou intenção, por vezes, sequer fazemos ideia, e essas elaborações entram, ao tomar contato com nossas identificações, em interação com ideologias a que queremos dar vazão, seja esta coincidente, seja não coincidente às nossas ideologias.
Nessa toada, podemos ler e escrever em simulacros que a nós parecem ser o real, o verdadeiro, exceto os simulacros da realidade, pois eles são a nossa mais pura evidência ideológica.
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