Centro de Memória Social da UEMG: onde a cidade guarda suas lembranças
- Contextualize UEMG - Passos
- 10 de out.
- 4 min de leitura
Por: Lívia Peres
Entre as estantes e caixas, repousam jornais que já não circulam, mas ainda falam. Fotografias de prédios que não existem mais, objetos que perderam a utilidade prática, mas não o peso simbólico. Um centro universitário que respira história. Esse é o Centro de Memória Social (CMS) da UEMG, um espaço onde o tempo não é apenas lembrança — é matéria-prima.

Foto: Centro de Memórida da Uemg Passos.
O CMS surgiu da necessidade de preservar aquilo que desaparecia diante dos olhos da própria comunidade. Documentos, periódicos, imagens, fragmentos da vida social de Passos e da região sudoeste de Minas foram, por décadas, descartados ou esquecidos. Criar um centro de memória foi, portanto, mais do que um gesto institucional: foi um ato de resistência contra o esquecimento.
Hoje, cada peça que entra no CMS passa por um ritual silencioso. O responsável técnico, Pedro Paulo Abreu Barborana, explica que o primeiro cuidado é a higienização. Pincéis, luvas e máscaras substituem as mãos nuas. Cada jornal, cada documento é colocado em quarentena antes de ganhar espaço no inventário.
“Todos os nossos acervos, ao chegarem, são limpos e deixados em quarentena. Depois, são catalogados. Os jornais, especialmente, demandam atenção maior por conta da fragilidade do papel. É um trabalho de paciência e de zelo.”
Entre os materiais que mais desafiam o tempo, estão justamente os periódicos locais já extintos, como o Sudoeste e a Gazeta de Passos. Suas páginas não registram apenas manchetes, mas também a transformação da cidade: ruas que mudaram de nome, prédios que foram demolidos, costumes que se reinventaram. São nesses jornais que pesquisadores encontram pistas para entender não só o passado da universidade, mas da própria comunidade.
O trabalho, porém, não se limita à preservação física. Há anos, o CMS se dedica à digitalização de seu acervo. Periódicos, VHS e fotografias são convertidos em arquivos disponíveis em um blog e em um drive acessível a toda a sociedade. É nesse gesto que a memória rompe as paredes do arquivo e ganha novos leitores, em qualquer lugar do mundo.

Foto: Centro de Memória Social da Uemg Passos
Mas o CMS não é feito apenas de prateleiras e documentos. É um espaço vivo, em constante diálogo com estudantes e professores. Para o presidente do Centro Acadêmico de História, Maico Santos, não há como separar o curso de História e o Centro de Memória:
“É praticamente um pacote só. Muitos projetos de pesquisa dos alunos de História utilizam o acervo como fonte. Ele é vital para a nossa formação e fortalece a consciência crítica. Ano passado, por exemplo, tivemos uma exposição no bloco principal sobre mulheres desaparecidas durante a ditadura militar. Esses projetos mantêm a história em debate e mostram que ela nunca é só passado.”
Esse vínculo entre o CMS e a sociedade também se revela nas doações. Famílias da cidade entregam ao centro fotografias antigas, peças de vestuário, revistas, objetos que poderiam ter sido descartados, mas encontram ali nova vida. Segundo Maico, esse processo evita que memórias inteiras sejam apagadas:
“Quando pessoas mais velhas falecem, muitas vezes os familiares descartam bens importantes. O Centro de Memória impede que esse conteúdo se perca.”
Para os estudantes que vivem o cotidiano do CMS, o impacto vai além da teoria. Júlia Marques, bolsista e pesquisadora, encontrou nos jornais da década de 1960 não apenas uma fonte de dados, mas uma revelação pessoal. “No início achei que seria só poeira e jornais velhos. Mas logo percebi o quanto esse acervo é valioso. Encontrei anúncios de casamentos, propagandas antigas, registros de uma Passos que eu nem imaginava. Descobri, por exemplo, a antiga Faculdade de Filosofia de Passos, a Fafipa, que precedeu a estadualização. Essas páginas mostram como chegamos até aqui.”
Entre as linhas amareladas, Júlia também esbarrou nos ecos da ditadura militar. Notícias que reproduziam o medo do comunismo, colunas que defendiam “ordem e progresso” a qualquer custo, registros que hoje soam absurdos, mas que ajudam a compreender o clima político da época. “É chocante ver como os jornais falavam de ameaça comunista, fome, golpe. Isso ajuda a entender muito do que ainda vemos no Brasil hoje.”
Para ela, o CMS não é apenas um laboratório de pesquisa. É uma escola de sensibilidade: “Aprendi a manusear documentos com cuidado, a preservar. Mas também aprendi a olhar para minha cidade de outro jeito. Ver que problemas que enfrentamos hoje, como lixo e limpeza urbana, já eram pauta em 1963. É um choque perceber continuidades e rupturas.”
O Centro de Memória Social da UEMG, coordenado pela professora Janaína Tales, com apoio de técnicos, estagiários e pesquisadores, é um dos raros espaços que transformam a memória em experiência coletiva. Não serve apenas para guardar o que passou: serve para que estudantes entendam seu presente e construam um futuro mais consciente.
Cada jornal higienizado, cada fotografia digitalizada, cada exposição realizada é uma forma de dizer que a história importa — e que sem memória, não há identidade.
Num momento em que a UEMG Passos celebra 10 anos de estadualização, o CMS é mais do que um arquivo: é símbolo de permanência, crítica e pertencimento.
É a lembrança de que o conhecimento não se constrói apenas em salas de aula, mas também no cuidado com aquilo que o tempo insiste em apagar.
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