Oswald Ducrot, um dos mais tenazes pesquisadores no campo de estudos da linguagem, assevera que as argumentações que, postas em jogo nos embates de qualquer natureza de interação linguística, estão na própria língua, enquanto estruturas sintáticas e semânticas, e, assim sendo, estão à disposição dos falantes e não, como se pensam outras vertentes teóricas mais ligadas aos estudos cognitivos, na mente desses falantes.
É uma reflexão de estudo extremamente interessante que busca compreender como certas operações argumentativas corroboram para a eficácia da própria comunicação, seja ela oral, seja ela escrita. Entretanto, para outros tantos “veios” de pesquisa – e muitos estudos ainda no escopo das ciências da linguagem, tal como os de Análise do Discurso, principalmente a escola francesa, a eficácia de algumas argumentações não está atrelada nem à ordem exclusivamente estrutural da língua nem à ordem exclusivamente cognitiva dos falantes das distintas línguas naturais do mundo.
Há algumas argumentações que parecem expor uma espécie de “equívoco”, não necessariamente proposital, dos argumentadores. Esta falha de ritual, muitas vezes, faz sobressaltar questões que derivam pela história social humana, nas mais distintas conjunturas e condições materiais de produção dos fatos. Senão vejamos um exemplo: talvez a onda de comentários e debates fortemente conservadores e, às vezes, até reacionários e preconceituosos, que há muito tempo se passa no Brasil trouxe à enseada dos debates públicos discursos que estão em co-ocorrência, claramente partes de uma polêmica constituída. Desta verte de discursos a favor e/ou contra, de ambos os lados, surgiu uma polêmica há algum tempo, que rememoro neste texto, entre a cantora Joelma paraense, da banda brasileira Calypso, e o escritor brasileiro de novelas da Rede Globo, Aguinaldo Silva. A cantora supostamente disse à revista Época: “Já vi muitos se regenerarem. Conheço muitas mães que sofrem por terem filhos gays. É como um drogado tentando se recuperar”. Silva a rebateu, via Twitter, ao, supostamente, declarar que “Joelma canta mal, dança mal, rebola mal, se veste mal e quando abre a boca. Só fala besteira”. Entre farpas e beijos, Joelma, em entrevista ao site Ego, tentou se retratar ao dizer: “se eu fosse homofóbica, não teria amizade com gay. O que eles fazem é problema deles, não tenho nada com isso. Não fiz nada para agredi-los e não tenho esse direito. Mas sou contra o casamento gay. Seria o mesmo que eu concordasse que meu filho gay se casasse. Uma mãe quando sonha coisas para o filho só sonha coisas boas”.
Do ponto de vista da eficácia de sua argumentação, Joelma apenas ratificou seu posicionamento, que anteriormente negara, como um discurso homofóbico. Explica-se: ela começa sua argumentação com a sentença condicional “se eu fosse homofóbica, não teria amizade com gay.” Portanto, tentou se afastar da pecha da homofobia, que, por seu turno, responde ao primeiro discurso seu, assim como ao que foi polemizado por Aguinaldo Silva. A isso, ela adiciona outros predicados que lhe fariam, em sua concepção, uma pessoa não homofóbica. Todavia, no arremate de sua argumentação de defesa, surge um equívoco que abre um expediente para discursos que corroboram para o encaixe discursivo historicamente já significados em termos de homofobia. E não se trata de aceitar ou não o casamento gay, mas o que vem em sequência: “Seria o mesmo que eu concordasse que meu filho gay se casasse. Uma mãe quando sonha coisas para o filho só sonha coisas boas”. Irrompe, neste argumento, uma falha no ritual discursivo de sua defesa. Se ela não tem problemas com gays, segundo suas palavras, porque, então, assevera que, ao consentir que um filho gay se case, estaria contrariando seu sentimento materno de querer somente coisas boas a seu filho? Este
último trecho do discurso de Joelma coloca em antagonismo dois conjuntos de sentidos: não tenho nada contra os homossexuais, inclusive tenho amigos, logo simpatizo com eles versus sou uma mãe – e reúno aqui todos os históricos valores positivos em relação à maternidade – e quero só coisas boas a meu filho, o que não inclui vê-lo casar-se por fruto do amor em uma relação homoafetiva. Portanto, nesse espectro amoroso-maternal não está incluído, pois observamos a presença do advérbio excludente “só”, mobilizar uma orientação de sentido em que os bons sonhos que uma mãe pensa para os filhos possam passar pelo direito matrimonial entre homossexuais. Há uma incongruência de argumentos no discurso da cantora. Neste dito, corrobora-se, complementando, seu discurso primeiro, polemizado pelo escritor da Globo, isto é, um discurso supostamente homofóbico.
De maneira intencional ou não – neste caso, não cremos que tenha sido intencional, tanto pela forma como estão postas as sentenças do discurso da cantora quanto por uma crença teórica – fato é que esta aparente contradição argumentativa mostra quanto os sentidos escapam aos sujeitos, em falhas e equívocos, fazendo, dessa maneira, transparecer aquilo que por vezes está opaco aos próprios sujeitos dos discursos e, mais ainda, sentidos que estão aquém e além deles.
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