De vanguarda em vanguarda nas pistas da história *
É possível pensar a mobilização social como um acontecimento histórico de lutas antes mesmo de pensar na própria conceituação teórica desse fenômeno de massa. No entanto, é possível dizer também que a experiência de lutas como um corpo mais coletivo, mais organizado e em busca de diversos direitos das chamadas pautas de cidadania e contra o sistema de capital se dá, sobretudo, depois do século XIX e em sua consequente passagem ao século XX.
As chamadas revoluções burguesas, associadas ao advento da Revolução Industrial, criaram, além de muitas demandas – a bem da verdade, já represadas durante séculos anteriores –, uma formação de mobilizações possíveis para aquele momento histórico e de um certo espírito de coletividade, ou, melhor, de força por meio da coletividade, que inaugura inclusive as primeiras conscientizações de classe trabalhadora. Esse espírito de coletividade e, por vezes, solidariedade de classe que engloba, aliás, pautas e necessidades comuns, possibilitou a toda uma sorte de grupos sociais, nos mais distintos lugares, engajarem-se em lutas de resistência à opressão mais ou menos difusa que se postavam diante das condições históricas em questão dos embates. A propósito e apesar da redundância, a resistência resistiria, como sabemos, ao esvaziamento da ampulheta do tempo.
É verdade factualmente histórica que, entre esses grupos, sob muitas pautas organizadas em resistência e reivindicação de direitos fundamentais a uma sobrevivência digna, está a classe estudantil, ou, como diriam alguns, a categoria social estudantil. Uma massa social que, principalmente a partir de meados do século XX, pôde experimentar e experienciar a formação de um corpo coletivo de busca por direitos, tendo, na grande maioria das vezes, de resistir a fortes opressões e opressores – inclusive intestinos à própria classe estudantil, ante o caráter discrepante entre condição de classe e posição de classe, na linha da própria contradição ideológica.
Dessa forma, pode-se pontuar pelo retrovisor da história que a luta pelos direitos civis americanos nos anos 1960, travada majoritariamente por jovens estudantes americanos e com pautas amplas, envolvidas no limiar das discussões sobre o sectarismo racial, criou o rastilho de consciência, de início da experiência e do engajamento da classe estudantil. O auge desses movimentos, aí sim, já espalhado pelo mundo afora, culminou no chamado Maio de 1968. A partir das experiências americanas e europeias, sobretudo as francesas, aquele ano de 1968 trouxe especiais contribuições de experiência de mobilização social-estudantil, reverberantes até os dias atuais. No Brasil daquela época não foi diferente, com um ingrediente além, qual seja, a pauta de mobilização brasileira trazia uma coloração política bastante grande, porque, como sabido, vivíamos um momento político-civil-jurídico de arbitrariedades totalitárias e autoritárias, iniciadas no Golpe (sempre ele!) de 1964 e agravadas ao fim do ano de 1968.
De todo esse caldo de luta e experiência, embora massacrado muitas vezes pelas distintas correlações de forças, houve saldos muitos positivos e que pavimentaram os acontecimentos mais recentes no Brasil do século XXI.
Assim sendo, ao refletir acontecimentos sociais como pontos de encontros entre memórias e atualidades da história brasileira e estudantil mais recente, temos as chamadas jornadas de junho de 2013 que, apesar de o desfecho ter apresentado grupos e demandas de vários movimentos que são, na verdade, anti-pautas de cidadania, guardavam em sua memória de mobilização partes desses primeiros movimentos sociais-estudantis, a saber, a não verticalidade da organização, pautas que se tornam difusas com a criação do corpo coletivo, mas que se iniciam com pautas bastante específicas e pontuais: no maio de 1968, a luta se inicia pela moradia mista de estudantes na França; nas jornadas de junho brasileira, a luta se inicia com as pautas da mobilidade urbana, do transporte público, do repensar humanisticamente a cidade e os valores financeiros e social desse tipo de transporte.
A palavra também resiste
Há tenazes pesquisadores no campo das ciências da linguagem( ou Linguística) a asseverar que as argumentações, postas em jogo nos embates de qualquer natureza, estão na própria língua, enquanto estruturas sintáticas e semânticas formais, e à disposição dos falantes e não, como se pensa “por maioria de votos”, na mente desses falantes. É uma reflexão de estudo extremamente interessante e que busca mostrar como certas operações argumentativas corroboram para a eficácia de uma comunicação, seja ela oral, seja ela escrita. Entretanto, muitos estudos ainda no escopo das ciências da linguagem buscam compreender que a eficácia de algumas comunicações argumentativas não está atrelada nem à ordem exclusivamente estrutural da língua nem à ordem exclusivamente cognitiva dos falantes das distintas línguas naturais do mundo.
Existe uma ritualística que, muitas vezes, faz sobressaltar questões que derivam pela história social humana, nas mais distintas conjunturas.
Dessa forma, ao assumir determinadas palavras, além de uma orientação semântica, o sujeito assume toda essa carga histórica e arca com os efeitos de sentido derivantes. Porém, isso não é necessariamente negativo. Um caso emblemático acontece nas jornadas de Mobilização Estudantil dos discentes da Universidade Estadual de Minas Gerais, na cidade de Passos, iniciadas ao final de setembro e início de outubro de 2016.
Grosso modo, com uma pauta de melhoria da estrutura educacional como um todo da instituição(efetivação de corpo docente, não precariedade das condições de trabalho e das instalações da unidade etc.), os estudantes têm empunhado cartazes e estampado camisetas com o dizer “A UEMG Resiste”. A ideia de resistência por óbvio subentende a resiliência dos sujeitos e a não pusilanimidade diante das adversidades. Mas, ao trazer a feliz pequena frase “A UEMG resiste” à baila das discussões das atuais jornadas de 2016, os estudantes da UEMG mobilizam um pouco de toda resistência de todos os movimentos anteriores, ou seja, um pouco da luta e da força de mobilização inscrita na forma estrutural-histórica da palavra resistir, dado que resistir, na boca e na semiótica dos cartazes, em Passos, 2016, é justamente o ponto de encontro de memórias das experiências das mobilizações estudantis, anteriores a esta de Passos, com uma atualidade específica da mobilização estudantil, que, nessa formação de acontecimento, irá reverberar em experiências posteriores, quaisquer que sejam as pautas das novas mobilizações sociais-estudantis.
Diante disso, a resistência não está só em “A UEMG resiste”, através do corpo das mobilizações dos estudantes, das camisetas, dos cartazes, mas também na recuperação dos discursos de luta e dos acontecimentos por meio das palavras.
* Um especial obrigado ao professor Frederico Daia Firminiano e ao professor Jean Carllo pelas boas discussões e contribuições ao texto.
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